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O problema de um, não atinge o outro

Bairros historicamente opostos em tudo. De um lado, o Espinheiro: bairro nobre, vertical e bem arborizado, com uma população de 10.438 habitantes distribuídos entre os 73 hectares de bairro. De outro, o Alto José do Pinho: subúrbio onde o poder público parece não chegar da mesma forma, que possui uma área territorial de 41 hectares e uma população de 12.334 pessoas.

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Estas disparidades, contudo, ultrapassam os limites territoriais e apresentam-se nos serviços básicos ofertados nos dois lugares, em especial, na educação. Segundo a Prefeitura do Recife, a Taxa de Alfabetização da População do Espinheiro é de 98,1 %, enquanto no Alto José do Pinho este número cai para 91,7%. Uma análise superficial da quantidade de escolas públicas e privadas nos dois bairros nos mostra que o Espinheiro é melhor assistido no quesito educação básica do que o Alto José do Pinho, que possui apenas duas escolas públicas para toda a população.

Um dos fatos que chama atenção, no entanto, é a localização das escolas públicas no Espinheiro: enquanto as grandes e estruturadas escolas particulares situam-se no centro do bairro, as públicas ficam nas áreas menos nobres e atendem a parcela menos favorecida da comunidade. Isso acontece porque o serviço ofertado pelas escolas públicas e privadas está diretamente ligado a demandas sociais, culturais e econômicas, fatores que influenciam diretamente na qualidade deste serviço.

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Enquanto a classe média matricula seus filhos nas mais caras escolas, a classe mais pobre fica à mercê dos serviços educacionais administrados pela prefeitura e pelo governo estadual. Mais do que um senso comum a todos os brasileiros, o fato de que escolas privadas são mais qualificadas que escolas públicas pode ser comprovado em números: O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, IDEB, é o principal indicador de qualidade da educação do país que expressa de 0 a 10 o andamento dos sistemas de ensino. De acordo com o senso divulgado em 2017, tanto as escolas públicas quanto particulares obtiveram um aumento no índice de rendimento de 2005 para 2015, mas, ainda assim, as escolas públicas estão abaixo da média (6). Para estas, a meta é alcançar, apenas em 2021, a média dos países desenvolvidos.

Dados: IDEB por região - Pernambuco. Anos iniciais (Gráfico 1) e anos finais (Gráfico 2)

Os dados nos levam a questionar a eficiência do ensino ofertado pela rede pública no Brasil às camadas da população menos favorecidas economicamente. Se levarmos em consideração que as universidades públicas são as mais almejadas pela classe média, perceberemos uma incongruência ainda maior. Por que isso ocorre?

 

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Educação pública no Brasil: uma ideia fora do lugar

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A Constituição de 1998 estabelece no Capítulo III, Seção I do Artigo 205 que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada [...]”. A Lei Magna representou, mesmo com típico atraso do Brasil, uma mudança significativa na educação brasileira: agora, todos, sem exceção, têm o direito à educação básica e o Estado tem o dever de promovê-la de forma igualitária, pois ela é indispensável na formação de cidadãos. Segundo a pedagoga Ana Patrícia, “A escola exerce um papel fundamental tanto nos aspectos emocionais quanto cognitivos da criança. Uma educação de qualidade desenvolve a interação, o convívio, o repartir, a doação [...] e tudo isso influencia no comportamento, na organização, na convivência e na educação da criança. Então, o ambiente escolar tem grande influência na vida do cidadão”.

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O sistema educacional público brasileiro surge, então, com o objetivo de garantir este direito, representando um projeto fundamental para a existência de uma sociedade mais justa e igualitária. No Brasil, temos um modelo de educação básica que oferece o ensino gratuito desde a primeira infância até a preparação para o vestibular: As creches municipais são uma alternativa para que as famílias da classe C, D e E possam trabalhar e ter onde deixar seus filhos. Ao atingirem a idade adequada, as crianças passam, então, para as escolas municipais, onde passam a maior parte da infância – do maternal ao 5º ano. Depois, passam para as escolas estaduais, onde completam o ensino médio, para, então, ingressarem nas universidades públicas. Esta é a ideia fundamental do sistema, que se fosse qualificado, atenderia, também, a classe A.

Mas, como interpreta Roberto Schwarz, em “Ao vencedor as Batatas”, algumas boas ideias não se adequam à nossa base estrutural e realidade social. Isso significa dizer que há, em nosso país, uma desarmonia entre a teoria e a prática que explica, por exemplo, o fato de o liberalismo europeu ter se materializado no Brasil de forma problemática e incompleta. Tudo isso porque a sociedade brasileira sofre de disparidades em todos os setores, nos quais a lógica da dominação predomina.

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Dessa forma, presenciamos no ensino público o descaso com as escolas, a falta de investimento por parte do poder público, o desvio de verbas, a desvalorização dos professores, a falta de materiais básicos de apoio, os salários baixos dos profissionais da educação, entre outros problemas. À medida que isso acontece, cresce a mercantilização da educação, com escolas privadas cada vez mais caras que se vestem quase que de empresas de marketing para “atrair clientes”.

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Tudo isso manifesta uma ideia fora do lugar que é reflexo, acima de tudo, de um histórico social de desigualdade, no qual as políticas públicas favorecem determinadas camadas da sociedade e a lógica do favor impera nas relações administrativas e governamentais. Quem sofre com essa realidade, nós já sabemos: aqueles que, ironicamente, precisam ainda mais dessas políticas e são esquecidos e deixados as margens da sociedade. Aqueles que não possuem capital financeiro para investir em boas escolas para seus filhos. Aqueles que são inseridos num ciclo vicioso de uma educação pública que é oriunda de um processo histórico pautado na desigualdade e que, ao mesmo tempo, acentua ainda mais esta desigualdade. Se a educação é um direito fundamental do ser humano, por que ela não é ofertada da mesma forma a todos?

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É na prática que vemos o lugar fora das ideias: Ana Paula é diarista e mora em frente a Creche Municipal Irmã Dulce, localizada na área menos nobre do Espinheiro, onde seu filho de três anos estuda. No momento em que a reportagem estava sendo feita, os professores da rede municipal estavam em greve por tempo indeterminado. “A creche, em si, não é ruim. O problema é que a prefeitura não paga o salário das professoras e por causa da greve as crianças só estudam até 11:30h e o horário normal é até 17h. Por causa disso muitas mães não estão trazendo seus filhos, porque têm que trabalhar e não podem vir buscar de 11:30h. Tanto é que na sala do meu filho são 12 crianças e tem dia que só vem 5”, contou a mãe do aluno.

Algumas boas ideias não se adequam

à nossa base estrutural e realidade social

 

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“Um outro problema é que nem todos os alunos são daqui da comunidade. Eu nasci e me criei aqui nessa comunidade e aqui na creche se tiver seis crianças daqui, tem muito. Isso não existe! Quando a prefeitura construiu essa creche foi pra dar prioridade às mães daqui. Tem gente que vem de longe pra deixar as crianças aqui”, contou a mãe, “A gente reclama muito por conta disso. Pra meu filho entrar aqui eu fui pro Ministério Público, fiz uma denúncia na internet, expliquei que sou diarista e não tenho condições de criar meu filho. Eu moro há dois anos, meu filho foi matriculado em outubro do ano passado”, disse.

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A filha mais velha de Ana Paula já estudou nas duas outras escolas públicas do bairro, Escola Municipal Dom Helder Câmara e Escola Estadual Santa Paula Frassinetti, segundo a diarista “No Dom Helder estava tendo greve mas as professoras voltaram porque ficaram sabendo que ia ser descontado no salário delas. O salário já é pouco, se descontar, coitadas! Já o Paula Franssinetti é escola de referência. Para entrar tem que fazer um teste e ver as notas das escolas anteriores. Se não tiver nota boa, não entra”.

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Jeane trabalha nas ruas do Espinheiro vendendo bolo de rolo, e apesar de seu filho não estudar na escola do bairro, ela também é mãe de aluno de escola municipal e percebe a movimentação em seu local de trabalho. “A prefeitura tem que trabalhar mais em cima disso aí [...] e melhorar a situação dos professores também. Tem que olhar o lado deles porque eles precisam. A greve também prejudica as crianças. Pra quem não sabe ler, prejudica a leitura”, disse.

Escolas Públicas no bairro do Espinheiro

A desvalorização dos professores é um dos grandes problemas do ensino público sendo, talvez, o fator que mais interfere negativamente no processo de ensino-aprendizagem da criança. Entre os dias 16 e 24 de maio, 80% dos professores das escolas municipais do Recife estavam com suas atividades paralisadas devido ao não cumprimento da Lei do Piso por parte da Prefeitura. “Torcemos para que Geraldo Júlio atenda nossas pautas o quanto antes, e assim, possamos voltar para a sala de aula”, declarou o Sindicato dos Professores, Simpere, Segundo a cartilha de análise de finanças da prefeitura enviada pelo Simpere, não faltam recursos para a Prefeitura de Recife, em contrapartida, os investimentos do município em educação são cada vez menores.

“Torcemos para que Geraldo Júlio

atenda nossas pautas”

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Sindicato dos Professores

O fato confere ao Recife o título de capital do Nordeste que menos investe em professor: “A categoria vai amargando um profundo arrocho salarial, que não se justifica pela situação financeira atual da prefeitura [...] Em 2016, a Prefeitura do Recife gastou apenas 5,38 % da Receita Total com profissionais do magistério.  Esse valor é o mais baixo dentre todas as capitais do Nordeste. Recife é a quarta cidade do país entre as maiores cidades que menos investiu em profissionais do magistério”. Além do problema da falta de investimento adequado, o trabalho do professor se torna cada vez mais intenso e precário. Ainda segundo a cartilha enviada pelo Simpere “Os estados estão transferindo para as prefeituras a responsabilidade do ensino fundamental já há algum tempo, isso significou em Recife que os profissionais do magistério tiveram que dar conta de mais alunos sem que proporcionalmente fosse mantido ao menos a mesma quantidade de professores e sem o aumento da mesma proporção de escolas e estrutura adequada”.

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Assim como no Espinheiro, os moradores do Alto José do Pinho também se queixam dessa desvalorização do profissional e, consequentemente, das greves. “Um dos problemas é que tem greve demais nas escolas daqui. Mal começa as aulas e as greves já estão começando”, disse Bruna Moraes, moradora do bairro há 30 anos.

Por ser um bairro de subúrbio, a situação das escolas públicas no Alto parece ser ainda mais precária que das do Espinheiro: No bairro, apenas duas escolas da rede pública são responsáveis pela educação da população: Escola Municipal Santa Maria e Escola Estadual Dona Maria Teresa Correa. O lixo no entorno das escolas chama a atenção de quem visita o bairro, apesar das campanhas de conscientização nas fachadas.

Escolas Públicas no bairro do Alto José do Pinho

A filha mais velha de Bruna estuda na escola estadual e seu filho mais novo, na municipal. “A escola que meu filho estuda é ótima. A que a minha menina estuda é uma negação: drogas, vândalos, muitas coisas. Pra mim a melhor escola que tem aqui é o Santa Maria, mas como só é até o 5º, tem que ir pra Maria Teresa ou pra outras longe, mas como a gente mora aqui na comunidade, tem que colocar as crianças perto de casa. E aqui no bairro só tem essas duas escolas”, contou a mãe dos alunos. “E é difícil conseguir vagas nas duas, principalmente no Santa Maria, porque como é uma escola boa as pessoas preferem, tem gente até que vem da Bomba, do Morro, da Mangabeira. Eu morava aqui na frente e não consegui vaga pro meu filho, tive que esperar de dois a três meses pra que alguma mãe desistisse e meu filho pudesse ser encaixado. É muita gente”, pontou.

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M. B., 16 anos, é aluno do 3º ano da Escola Estadual do bairro. Para ele, a estrutura do colégio não tem sido satisfatória. “Minha sala é pequena e quente. Só tinha três ventiladores e o colega de sala quebrou um, agora só temos dois. Faz muito calor”, reclamou, “E na época que eu era 1º ano o teto era de PVC. Choveu, a chuva derrubou e até hoje tá lá aberto. Faz tempo que não tem um investimento do governo na escola. Além disso, é muito fácil mais de um professor faltar durante o dia. Por causa disso, sempre estamos largando cedo”, explicou o aluno.

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Segundo o Grupo de Governança Comunitária do Alto José do Pinho, a educação pública no bairro precisa melhorar muito. “Aqui a primeira infância é totalmente negligenciada. Uma população de 13.000 habitantes não conta com nenhuma Creche. Além disso, as duas Escolas contam com o esforço gigantesco dos gestores e professores os quais sofrem com o descaso de Governos Municipal e Estadual. Existe uma Escola Municipal que comporta apenas 800 alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental e a Escola Estadual Dona Maria Teresa Correa, que é a única escola do bairro com etapas de ensino fundamental, médio e educação de jovens e adultos (supletivo”, explicou. “Falta manutenção nos prédios, da parte elétrica, hidráulica e retelhamento pois quando chove forte algumas salas ficam inundadas. Falta água desde novembro de 2017, quando ligamos para a COMPESA simplesmente dizem que está normal. Descaso total. Como pode um aluno ter estimulo para estudar numa sala suja, banheiro sujo, merenda ruim e aulas muitas vezes desconectadas da realidade?”.  

“Como pode um aluno ter estimulo para estudar numa sala suja, banheiro sujo, merenda ruim e aulas muitas vezes desconectadas da realidade?”

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Grupo de Governança Comunitária do Alto José do Pinho

Fica evidente, portanto, que o serviço público nas escolas de educação básica é precário e carece de atenção e investimento em todos os bairros. A comunidade do Espinheiro, no entanto, por estar situada num bairro nobre, possui um serviço superior – em termos de estrutura – ao do Alto José do Pinho. Além disso, há o fato de que apenas uma pequena parte de toda população do Espinheiro utiliza os serviços públicos, enquanto toda a população do Alto depende das escolas municipais e estaduais, isso significa dizer que a primeira comunidade é melhor assistida, pois há menos gente e mais escola. A qualidade do ensino da escola estadual do Espinheiro, apesar de não ser ideal, também pode ser considerada melhor. Uma pesquisa no IDEB por escola revela que em 2013, a média geral da Escola Santa Paula Frassinetti, no Espinheiro, foi 4,4. Já a Escola Maria Teresa Correa, no Alto José do Pinho, recebeu 3,4 neste mesmo ano. Os resultados do ranking do ENEM 2016 são semelhantes ao do IDEB: Enquanto a escola estadual do Espinheiro está na posição 9898 no Brasil e 320 do Estado, a do Alto José do Pinho ocupa a posição de 15283 no Brasil e 642 no Estado. A média da redação na prova do primeiro bairro foi de 526.58 e do segundo, 460.

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O ensino público no Brasil, particularmente em Pernambuco, constitui uma ideia fora do lugar. Porém, se esse lugar estiver localizado numa área mais nobre do estado ou da capital, o ensino é um pouco mais satisfatório.  Isso porque aqui, absurdamente, há disparidades até mesmo na forma pela qual um serviço de educação pública – e, portanto, na maioria das vezes, ruim – é ofertado.

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